A tal da Ninja |
A reflexão pública sobre o fenômeno da “Mídia Ninja” suscita um exercício acadêmico adequado a este Observatório da Imprensa:
1. Digamos: dividindo uma garrafa de um litro de refrigerante em dez garrafinhas, podemos mudar o sistema de produção, de preços, de distribuição. Só que a natureza do produto oferecido ao mercado continua a mesma. Em certas circunstâncias, a pluralização da oferta é capaz de incrementar o grau de democratização da produção e do consumo, mas refrigerante não deixa de ser refrigerante.
2. Transportemos esta questão econômica para o plano sociológico, com outro produto sócio-histórico: o indivíduo. A “sociedade” sempre consistiu em ficções, com coloração e características de época. Na modernidade, o individualismo cria a possibilidade de pensá-la como uma agregação de unidades autônomas, portanto, os indivíduos como uma nova categoria de agentes na História. Tocqueville resume: “A aristocracia tinha feito de todos os cidadãos uma longa cadeia que se elevava do camponês até o rei; a democracia rompe a cadeia e separa cada elo”. Os indivíduos são múltiplos ou diversos (como as garrafinhas), mas se enfeixam todos no genérico criado pelo individualismo.
3. Ainda mais um transporte: a pluralidade dos meios de produção de informações é capaz de interferir na economia do sistema conhecido como “mídia” (também uma ficção conceitual), pode até mesmo incrementar a democratização das opiniões por meio da proliferação de canais alternativos. Não abala, porém, o conceito genérico de mídia. Pelo contrário, reforça-o.
A propósito deste assunto, é instrutivo inteirar-se da história da Rádio B-92, de Belgrado, formada por um grupo de jovens que cresceu, em meio aos destroços nacionais da Iugoslávia pós-Tito, na Sérvia oprimida por Slobodan Milosevic (ver B-92 – rock e resistência em Belgrado, de Matthew Collin). Era o que se pode chamar de uma “rádio guerrilha”. Nela se inspirou, durante dez anos e a partir de 1990, toda a resistência à tirania e ao genocídio comandado por Milosevic.
A B-92 tinha, entretanto, um slogan curioso: “Não confie em ninguém, nem na gente”. Evidentemente, era tempo de guerra, de sinistro extermínio étnico, em que cada jovem punha em jogo a própria vida em face dos riscos da dissidência jornalística. Num contexto desses, a verdadeira informação pode ser mais provocação do que objetividade factual.
Morto Milosevic, morta a ditadura, que fim levou a B-92? Consta ser hoje a mais respeitada organização de mídia dos Balcãs. Ou seja, a contrainformação militante e provocativa integrou-se à “respeitabilidade” da “velha senhora” (em evocação de “AVisita da Velha Senhora”, de F. Dürrenmatt) chamada mídia – hoje, jurássica. Na “Idade Mídia”, a classe média é ao mesmo tempo “classe mídia” e assim contribui ideologicamente para a produção de consenso hegemônico por parte desses intelectuais coletivos das classes dirigentes que são os dispositivos de informação pública.
Na verdade, talvez não precisássemos ir tão longe, até os Balcãs, para buscar exemplos midiáticos de algo caracterizado inicialmente como transgressão e que depois regressa como filho pródigo à casa da “velha senhora”. No Brasil, entre as décadas de 1960 e 80, o viés político-transgressor da questão comunicacional centrava-se nos meios de radiodifusão ditos “populares”, combatidos pelos latifundiários do espaço hertziano.
Registra-se até hoje, aliás, uma espécie de guerra subterrânea contra as emissoras de rádio comunitárias, perseguidas por aparelhos estatais e empresas hegemônicas. Segundo dados recentes, que levam em conta as multas e fechamentos cadastrados, a repressão aumentou em torno de 35% em todo o Brasil. Mas é preciso levar em conta também os altos custos de produção para qualquer um dos tipos da mídia jurássica, até mesmo uma pequena rádio que se queira minimamente apresentável.
Em contrapartida, a tecnologia eletrônica ao alcance da “classe mídia” (celulares, câmeras baratas, redes sociais) favorece um fenômeno como o da Mídia Ninja – ou pelo menos o favorece em contextos de efervescência social, como os das recentes manifestações de rua, quando se abre espaço para uma cobertura participante dos acontecimentos por meio de técnicas “precarizadas”. No passado, a ditadura militar também abriu espaço para um jornal como O Pasquim, tecnicamente precário em face dos recursos midiáticos na época, mas um sucesso de crítica e público.
Diante de fenômenos dessa natureza, pilotados por gente jovem ou disposta a experimentar, é comum assistir-se à desconfiança dos profissionais mais velhos e integrados na ordem da “velha senhora” para com os que lhes pareçam insurgentes. É o que transparece nas colunas da grande imprensa ou em entrevistas, como a realizada pelo Roda Vida, TV Cultura de São Paulo (ver aqui). Nesta última, alguns entrevistadores insistiam em detalhes do que chamavam “o négocio” dos Ninjas. As respostas tinham algo de hilário porque estavam geralmente vazadas numa terminologia ininteligível, tudo menos “jornalístico” no sentido técnico do termo. O que ficou muito claro é que havia dinheiro da Petrobras por detrás.
Depois, a questão é saber se aquela turma engajada no movimento das ruas está ou não fazendo “jornalismo”. Mas é também claro que estão! Alguém se lembra de Carlos Lacerda? Ninguém lhe contestava a condição de jornalista por se engajar na política o tempo inteiro com seus textos. E a grande mídia atual? É uma política que não ousa confessar o seu nome, a exemplo daquele amor louvado por Oscar Wilde.
É hipócrita e jurássica a definição de jornalismo atravessada por protestos de objetividade. Foi rara a objetividade da grande imprensa brasileira sob a ditadura militar. Mas quase todo mundo brandia como slogan profissional a frase de Joel Silveira: “Repórter não desfila na banda, vê a banda passar”.
Só que para desgosto desse magnífico repórter que foi Joel Silveira, a objetividade sempre pôde servir de álibi para tudo. Na redação do órgão “jornalístico” em que fomos brevemente contemporâneos de Joel, a objetividade frente à realidade apresentada (socialites, artistas, moças de biquíni etc.) consistia em ver não a banda, mas a bunda passar. Há um notável precedente para esta expressão na crítica feita por Jean-Paul Sartre ao jornalismo sensacionalista, que ele chamou de “imprensa de bunda e sangue”. Não é um trocadilho vão, portanto, mas uma metáfora válida hoje mais do que nunca para a “objetividade” de uma mídia comprometida até a alma com a difusão do espetáculo e com comércio dos gadgets eletrônicos. O objetivo pretende equivaler ao real. Mas a objetividade corporativa costuma equivaler à realidade dos objetos postos à venda.
Espaço aberto
Por um lado, a Mídia Ninja apresenta características de empresa em nascimento: tem patrocinadores, espalha-se em rede, arrisca um vocabulário próprio e ataca as corporações de jornalismo, ou melhor, ataca nas ruas os supostos colegas de jornalismo. Isso é tática velha da competição em mercado, ainda que os jovens possam não se dar conta do fato: proclamando-se mídia nova, atacam a velha. Novo mesmo, porém, é o uso de gadgets eletrônicos e de redes sociais, além do envolvimento com os eventos. Resta determinar se o fenômeno é jornalismo inovador ou se é uma nova mídia velha.
Já em 1920, o educador e filósofo pragmatista John Dewey dizia que o jornalismo tinha de ir além do mero relato objetivo de acontecimentos para se tornar um meio de educação e debate públicos. A imprensa favoreceria o diálogo mais direto entre cidadãos e jornalistas. Mais do que “reportar”, a atividade jornalística teria em seu âmago a promoção da “conversa” pública.
A comunicação eletrônica oferece hoje recursos para se viabilizar as prescrições democratizantes de Dewey. Há um espaço aberto para experiências no atual vazio cívico da imprensa jurássica. No empuxo delas, cabe à sociedade dizer com que tipo de imprensa gostaria de conviver em termos mais duradouros.
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Muniz Sodré é jornalista e escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro
2 comentários:
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