Poster americano de Valente |
Produções culturais
voltadas para o público feminino parecem girar em torno da promessa do
casamento perfeito. Seja em comédias românticas ou desenhos animados, o enredo
das personagens femininas se resume, em geral, à busca pelo homem ideal. A
fantasia do matrimônio parece estar enraizada no imaginário dos contos de
fadas, em que donzelas indefesas aguardam enquanto o príncipe encantado
enfrenta obstáculos para salvá-las.
Com o passar dos
anos, esse imaginário sofreu modificações, que podem ser percebidas nas
produções da Disney. Filmes como Branca
de Neve, Cinderela e A Bela Adormecida, surgidos entre as
décadas de 1930 e 1950, retratam princesas frágeis salvas por príncipes
corajosos, por quem se apaixonam. Já no final da década de 1980 e início dos
anos 1990, surgem as primeiras heroínas através de produções como A Bela e a Fera, Aladdin e A pequena sereia.
Porém, a realização de desejos e ambições dessas personagens só é atingida
através do casamento, indicando que a mulher ainda depende de uma figura
masculina para viver plenamente.
Somente a partir da
segunda metade dos anos 1990 e início dos anos 2000 - com o Pocahontas e Mulan -, que surgirão as grandes heroínas da Disney. Suas histórias
são marcadas pela busca por liberdade, honra e coragem. São elas as portadoras
das virtudes necessárias para ultrapassar os obstáculos que se apresentam e
depende somente delas a concretização de seu sonho, que consiste em conquistar
seu lugar no mundo. Essas grandes personagens foram sucedidas por outras menos
impressionantes, mas nem por isso menos fortes, em produções mais recentes como
A princesa e o sapo e Enrolados.
Apesar dessa
evolução, esses filmes compartilham uma característica em comum: a ausência de
uma figura materna. De Branca de Neve e
os sete anões até A princesa e o sapo,
a mãe da protagonista morreu, desempenha um papel desimportante ou nem sequer é
citada. Quando esse papel possui alguma relevância na trama, é somente para ser
vilanizada através das madrastas. Com isso, a relação entre mãe e filha - uma
das relações mais complexas e importantes da vida de uma menina – continuou
ignorada. As protagonistas firmam suas identidades pela figura do homem, ao
qual se distanciam, aproximam-se, igualam-se e/ou se complementam. O masculino
sempre se apresenta como a referência a partir do qual o feminino se define.
Fugindo dessa
tradição, está a nova produção da Pixar, Valente.
O filme conta a história de Merida, uma princesa escocesa que enfrenta a
tradição para conquistar o direito de seguir seu próprio destino. Para isso,
ela deve enfrentar as preocupações de sua mãe, Elinor, que a treinou para
corresponder às expectativas da sociedade. Entretanto, a rebeldia de Merida
produz consequências desastrosas, forçando mãe e filha a revalidarem seus laços.
Com isso, o cerne de Valente está na
relação conflituosa entre mãe e filha, que precisa ser reconstruída em face das
adversidades.
Merida e Elinor |
Dessa forma, a Pixar criou
um novo tipo de princesa. A personagem de Merida não é definida através da comparação
com alguma figura masculina. Seu pai é reduzido a coadjuvante e ela sequer
carrega interesse romântico por algum rapaz. Sua personalidade e suas ações são
determinadas a partir de sua mãe, criando uma identificação do feminino com o
feminino. É através da figura de outra mulher, sua mãe, sua rainha, seu futuro,
sua tradição, sua história e sua herança, que Merida encontrará o mapa para seu
destino. Com isso, o filme emociona na sua capacidade de retratar uma relação
primordial para a constituição de qualquer mulher. Além de ser, nas palavras de
Ana
Maria Bahiana:
(...) refrescantemente próxima da experiência real – e não imaginada, em geral por um homem – de crescer sendo menina, à sombra das expectativas da sociedade, em geral encarnadas na figura materna, mas animada pelo fogo interior que é prerrogativa de todo ser humano. É um tema poderosíssimo, que merece ser retomado muitas vezes de muitas formas, limpo, sem clichês, sem distorções.
A animação também aponta
para uma nova tendência identificada por Naomi
Wolf, em seu artigo publicado no The Guardian. As produções
culturais comerciais estão abrindo os olhos para ambições, desejos e relações
importantes da vida de uma mulher, subvertendo a posição primordial que a
fantasia do homem ideal possui na sua busca por felicidade e relegando-o a
segundo plano. Isso não quer dizer que não há espaço para o amor ou para as
relações românticas, apenas estão sujeitas a outras expectativas igualmente
cruciais para a mulher. Naomi escreve:
Esses filmes despem os estratos de mística e entusiasmo direcionado às mulheres através da narrativa tradicional do casamento, e aumentam a importância do ponto de vista de que não há um final feliz se ela coloca todas as suas expectativas de aventura, transformação de vida e alegria futura nos ombros de um único homem (e um florista, um designer de vestidos e um serviço de buffet).
Ao contribuir para transformar
a percepção sobre o feminino dentro da tradição das histórias de princesas, Valente é também um filme com
sensibilidade suficiente para reduzir a figura do homem dentro da vida de uma
mulher a uma posição mais realista ao protagonizar uma relação que é muito
importante na formação de uma menina, mas que tantas vezes foi ignorada. Atende,
assim como as novas comédias românticas, a uma demanda de apontar e representar
com fidelidade a diversidade do universo feminino. Um universo complexo,
repleto de obstáculos e que, para aquelas que nele vivem, exige muita, muita
valentia.