Com uma narrativa fragmentada, Não estou lá, de Todd Haynes, traz uma maneira metafórica de contar uma única história. Entre os personagens que compõem um mito vivo da música folk norte-americana, a atriz Cate Blanchett ganha destaque no filme. Tanto por interpretar um homem drogado e desiludido com seu próprio protesto, quanto por empregar personalidade na interpretação, Cate sintetiza a idéia de vários intérpretes para uma única pessoa, o contexto da cultura beat e da contracultura do rock, assuntos que estão voltando em 2007 e 2008 (em filmes semi-ficcionais como Control, por exemplo).
O primeiro dessa seleção de criações é o menino negro e canhoto Woody Gunthrie, que é inspirado no cantor e violonista folk de mesmo nome e que inspirou Bob Dylan a empunhar um violão e tocar a música “de seu tempo”, sem estar preso ao blues de Robert Johnson e outros músicos negros das décadas de 1930 e 1940. Com o violão que tem os dizeres “esta máquina mata fascistas” (que eram do instrumento do Gunthrie verdadeiro), o garoto inspira velhos “blueseiros” e até homens brancos, além de andar escondido em trens de cargas. Interpretado por Marcus Carl Franklin, ele representa a passagem do tempo e as primeiras ousadias de Dylan sozinho pelos Estados Unidos.
O segundo, que na verdade é apresentado antes mesmo do garoto, é um personagem que não pertence a nenhum tempo e a nenhum espaço, representado apenas por uma tela branca por trás de seu corpo. Apesar de vestir roupas típicas do século XIX, o “Arthur Rimbaud” de Não estou lá, interpretado por Ben Whishaw, é um poeta que se resume ao seu cigarro e às constatações paradoxais de Dylan sobre sua própria vida. O verdadeiro Rimbaud reflete uma natureza tempestuosa em poemas que influenciaram toda uma geração de intérpretes folk e astros do rock, como a musicista e poetiza Patti Smith. Ela, por sua vez, era uma fã incondicional de Bob Dylan. Por essas relações diretas e indiretas, Rimbaud torna-se uma espécie de protagonista mais “distante” das histórias que se interligam.
O Jack Rollins do ator Christian Bale, que se transforma no personagem Pastor John na famosa “fase cristã” de Bob Dylan no final da década de 1970, é o típico superstar popular, especialmente dentro da música folk. Portando uma gaita junto com o tradicional violão, preso por ferros, Rollins não tem uma fala sequer no filme.
O que interessa em sua essência é a imagem que Bob Dylan consagrou dos astros folks, principalmente inspirado pela música de Woody Gunthrie. Rollins é mais bem descrito pela ex-namorada Alice Fabian, interpretada por Julianne Moore. Alice, por outro lado, é uma simulação perfeita de Joan Baez, uma das primeiras namoradas “públicas” de Dylan, e tão boa compositora no folk quanto ele próprio.
Eis que surge a interpretação mais controversa e a mais cativante do filme. Em takes entrecortados, Heath Ledger, consagrado esse ano pela interpretação do Coringa em Batman: O Cavaleiro das Trevas, encarna Robbie Clark, um homem que não é músico, mas sim um ator que interpreta Rollins em novelas de televisão. Sua vida pessoal com sua mulher, Claire, uma representação de Sara Dylan, a esposa que permaneceu mais tempo com o músico, é um constante desastre. Com sotaque francês, a mulher é atraente apenas nos tempos de solteiro, tornando-se um empecilho para sua vida desregrada mesmo estando casado.
Simultânea a história de Clark, Jude Quinn traz a faceta mais polêmica de Bob Dylan: o abandono das músicas folk, a adoção da guitarra elétrica na composição de Like a Rolling Stone e o uso de drogas mais pesadas, como o LSD. Encarnando esse “Dylan polêmico”, os traços femininos de Cate Blanchett contrastam com seu linguajar agressivo. Acordado dias e dias, Quinn abusa de afetaminas, apresenta as drogas aos Beatles (que aparecem no filme entorpecidos e perseguidos por várias fãs mulheres, após o sucesso nos Estados Unidos, em 1965) e concede entrevistas polêmicas para a imprensa britânica, durante sua turnê. Marcante também é a atuação de Bruce Greenwood, que interpreta o repórter da BBC inglesa, Keenan Jones.
Ao fim do filme, ainda intercalando com a interpretação breve de Bale do “Dylan religioso”, Pastor John, que abandona as drogas, Richard Gere protagoniza o personagem mais fraco do filme, apelidado de “Billy The Kid". Diferente do criminoso das histórias norte-americanas, o personagem de Gere parece um homem passivo aos acontecimentos, vago e instável em seus comportamentos. Chega a ameaçar Patt Garrett, que é a representação do homem que matou o verdadeiro Billy e é interpretado também por Greenwood, mas ainda se reserva mais ao culto da observação e da vida marginal, totalmente alheia.
Todos esses “Dylans” – e nenhum deles, uma vez que seu nome sequer é mencionado – somam-se a trilha sonora do músico verdadeiro, como The Ballad of Thin Man, e também músicas de outras bandas, como I´m Not There (a música-título do filme), da banda Sonic Youth.
Uma imagem que ficará na cabeça de muitas pessoas ao verem esse filme será, muito provavelmente, a que Jude Quinn usa a guitarra elétrica pela primeira vez, revoltando os fãs do “Dylan folk” e esclarecendo, de vez, o caráter contestador interminável desse artista que é Bob Dylan.
Por Pedro Zambarda
Após o glitter e a bissexualidade glam dos protagonistas roqueiros de seu filme Velvet Goldmine, em 1998, nove anos atrás, o diretor Todd Haynes penetra nas paisagens interioranas norte-americanas para contar a história de uma figura franzina, de cabelo bagunçado e igualmente influente no mundo do rock.
Sem citá-lo em nenhuma passagem, Bob Dylan é descrito de maneira abrangente no filme. Para não deixar escapar a complexidade de seus comportamentos, desde a influência da literatura beat de Jack Kerounac até os protestos que promoveu com o poeta, também beatnik, Allen Geinsberg (que aparece no filme, interpretado pelo ator David Cross), o diretor optou por criar personagens que descrevessem as diferenças e semelhanças dos "vários Dylans".
Sem citá-lo em nenhuma passagem, Bob Dylan é descrito de maneira abrangente no filme. Para não deixar escapar a complexidade de seus comportamentos, desde a influência da literatura beat de Jack Kerounac até os protestos que promoveu com o poeta, também beatnik, Allen Geinsberg (que aparece no filme, interpretado pelo ator David Cross), o diretor optou por criar personagens que descrevessem as diferenças e semelhanças dos "vários Dylans".
O primeiro dessa seleção de criações é o menino negro e canhoto Woody Gunthrie, que é inspirado no cantor e violonista folk de mesmo nome e que inspirou Bob Dylan a empunhar um violão e tocar a música “de seu tempo”, sem estar preso ao blues de Robert Johnson e outros músicos negros das décadas de 1930 e 1940. Com o violão que tem os dizeres “esta máquina mata fascistas” (que eram do instrumento do Gunthrie verdadeiro), o garoto inspira velhos “blueseiros” e até homens brancos, além de andar escondido em trens de cargas. Interpretado por Marcus Carl Franklin, ele representa a passagem do tempo e as primeiras ousadias de Dylan sozinho pelos Estados Unidos.
O segundo, que na verdade é apresentado antes mesmo do garoto, é um personagem que não pertence a nenhum tempo e a nenhum espaço, representado apenas por uma tela branca por trás de seu corpo. Apesar de vestir roupas típicas do século XIX, o “Arthur Rimbaud” de Não estou lá, interpretado por Ben Whishaw, é um poeta que se resume ao seu cigarro e às constatações paradoxais de Dylan sobre sua própria vida. O verdadeiro Rimbaud reflete uma natureza tempestuosa em poemas que influenciaram toda uma geração de intérpretes folk e astros do rock, como a musicista e poetiza Patti Smith. Ela, por sua vez, era uma fã incondicional de Bob Dylan. Por essas relações diretas e indiretas, Rimbaud torna-se uma espécie de protagonista mais “distante” das histórias que se interligam.
O Jack Rollins do ator Christian Bale, que se transforma no personagem Pastor John na famosa “fase cristã” de Bob Dylan no final da década de 1970, é o típico superstar popular, especialmente dentro da música folk. Portando uma gaita junto com o tradicional violão, preso por ferros, Rollins não tem uma fala sequer no filme.
O que interessa em sua essência é a imagem que Bob Dylan consagrou dos astros folks, principalmente inspirado pela música de Woody Gunthrie. Rollins é mais bem descrito pela ex-namorada Alice Fabian, interpretada por Julianne Moore. Alice, por outro lado, é uma simulação perfeita de Joan Baez, uma das primeiras namoradas “públicas” de Dylan, e tão boa compositora no folk quanto ele próprio.
Eis que surge a interpretação mais controversa e a mais cativante do filme. Em takes entrecortados, Heath Ledger, consagrado esse ano pela interpretação do Coringa em Batman: O Cavaleiro das Trevas, encarna Robbie Clark, um homem que não é músico, mas sim um ator que interpreta Rollins em novelas de televisão. Sua vida pessoal com sua mulher, Claire, uma representação de Sara Dylan, a esposa que permaneceu mais tempo com o músico, é um constante desastre. Com sotaque francês, a mulher é atraente apenas nos tempos de solteiro, tornando-se um empecilho para sua vida desregrada mesmo estando casado.
Simultânea a história de Clark, Jude Quinn traz a faceta mais polêmica de Bob Dylan: o abandono das músicas folk, a adoção da guitarra elétrica na composição de Like a Rolling Stone e o uso de drogas mais pesadas, como o LSD. Encarnando esse “Dylan polêmico”, os traços femininos de Cate Blanchett contrastam com seu linguajar agressivo. Acordado dias e dias, Quinn abusa de afetaminas, apresenta as drogas aos Beatles (que aparecem no filme entorpecidos e perseguidos por várias fãs mulheres, após o sucesso nos Estados Unidos, em 1965) e concede entrevistas polêmicas para a imprensa britânica, durante sua turnê. Marcante também é a atuação de Bruce Greenwood, que interpreta o repórter da BBC inglesa, Keenan Jones.
Ao fim do filme, ainda intercalando com a interpretação breve de Bale do “Dylan religioso”, Pastor John, que abandona as drogas, Richard Gere protagoniza o personagem mais fraco do filme, apelidado de “Billy The Kid". Diferente do criminoso das histórias norte-americanas, o personagem de Gere parece um homem passivo aos acontecimentos, vago e instável em seus comportamentos. Chega a ameaçar Patt Garrett, que é a representação do homem que matou o verdadeiro Billy e é interpretado também por Greenwood, mas ainda se reserva mais ao culto da observação e da vida marginal, totalmente alheia.
Todos esses “Dylans” – e nenhum deles, uma vez que seu nome sequer é mencionado – somam-se a trilha sonora do músico verdadeiro, como The Ballad of Thin Man, e também músicas de outras bandas, como I´m Not There (a música-título do filme), da banda Sonic Youth.
Uma imagem que ficará na cabeça de muitas pessoas ao verem esse filme será, muito provavelmente, a que Jude Quinn usa a guitarra elétrica pela primeira vez, revoltando os fãs do “Dylan folk” e esclarecendo, de vez, o caráter contestador interminável desse artista que é Bob Dylan.
Um comentário:
Filmão, com um verdadeiro Dream Team no elenco. Além da Cate Blanchett, seria um pecado não citar os talentos e as interpretações intensas dadas por Christian Bale e Heath Ledger, melhores atores de sua geração.
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