quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Barriga em jornalismo também é "business"

Por Júlio Ottoboni
Do Observatório da Imprensa, por Creative Commons.

Há diversos tipos de dor de barriga e elas podem ser provocadas pelas mais diferentes causas. Mas, de longe, a mais dolorida e incômoda é a dor advinda da “barriga jornalística”, já que sua causa geralmente é a falta de apuração sobre o assunto, um preceito básico da prática da profissão.

Lisa Padilla/Flickr/Creative Commons

No jargão jornalístico barriga ou barrigada é quando se publica uma informação falsa, geralmente por desleixo e falta de compromisso maior com o que se noticia. Algumas delas se tornaram clássicos, como o caso “boimate” da Veja ou da Folha de S.Paulo, que promoveu a cervejaria Antárctica como patrocinadora do time de futebol do Corinthians. O “furo” barrigudo veio em página inteira, com direito a chamada em primeira página, e poucos dias depois o clube apresentava um banco como o financiador do time.

O jornal O Estado de S.Paulo, o centenário e conservador Estadão, também já deu suas barrigas históricas. Mas isso era tido como caso de demissão na Redação do jornal. A qualidade da informação recebida pelo leitor era algo sagrado – embora o jornal dê sinais claros de que nos últimos tempos passou a cultivar o gosto por uma protuberância abdominal em suas páginas e portal da internet.

Os registros barrigudos começaram a se acumular depois de o Estadão ter anunciado que o asteroide Pallas C4 se chocaria com a Terra em poucos dias (o que, na verdade, se tratava do lançamento do carro da Citroën), e agora presenteia seus leitores com uma extensa reportagem publicada na quarta-feira (20/11) na editoria de “Economia & Negócios” sob o título: “‘Segredo para o sucesso é ambição e muito trabalho’, diz executivo”.

Nome? Destino?

O repórter deitou elogios à performance profissional de um executivo indiano-brasileiro, um gênio saído das lâmpadas mágicas do universo asiático para o mercado tupiniquim. Algo digno de um roteiro de Bollywood, para causar inveja ao filme “Quem Quer Ser Um Milionário”.

O jornalista, sem conter sua empolgação, emendou: “Hoje, aos 42 anos, o executivo comanda a Nilla Business, dedicada a administrar os bens de uma comunidade de 300 famílias indianas ao redor do mundo. O patrimônio administrado pela companhia é de cerca de R$ 1 bilhão”. Algo que seria fantástico, mas como saber se isso é verdade ou um tremendo engodo?

Bastava ir ao Google, o oráculo dos jornalistas afobadinhos, quando não preguiçosos, para topar com os sites e referências ao Grupo Nilla e ao Nilla Business. Ambos pertencentes ao mesmo dono e com endereços idênticos, os quais – diga-se – inexistentes. O principal deles fica na Rua Coronel Melo de Oliveira, 1100, na Lapa, São Paulo. Neste número há o corredor de uma casa, provavelmente fundos, onde funcionava uma empresa de jardinagem. Bem pouco para uma megacorporação.

Entretanto há algum engano aqui, pois a reportagem diz que “a empresa, baseada em Londres, busca oportunidades de negócio ao redor do mundo, inclusive no Brasil”. São Paulo ou Londres?

Como o site da Nilla Business dá um endereço inexistente na capital paulista, o correto é procurar na capital da Inglaterra, mais propriamente no número 163 de Kingsley Road Hounslow, na região metropolitana de Londres. O que se encontra lá também é frustrante: uma casinha de subúrbio operário, acanhada e sem qualquer jeito de sediar uma companhia que gerencia R$ 1 bilhão de famílias indianas.

Ainda restam para checar dois outros endereços da Nilla Business: um prédio na Avenida São João, 1461, em São José dos Campos, São Paulo, e Business Office – Índia, que ficaria no 2ND Floor Faijabad Road Sanjay Gandhi Puram – Lucknow. Porém, é fácil perceber que ambos os endereços não são na Inglaterra e a Índia já se libertou do império britânico há algum tempo.

Na terra da Empresa Brasileira de Aeronáutica (Embraer) existe um casarão fechado, com uma placa em sua fachada: Grupo Nilla – Marketing e Comunicação. Outra questão: ali é o local do escritório da Nilla Business ou não? O que consta, segundo alguns profissionais do mercado publicitário local, é que o aluguel está vencido faz três meses e a água foi cortada. Deve ser esse então o motivo de nenhuma movimentação no lugar.

No destino indiano, há sim uma empresa no endereço exposto no site da corporação tratado pelo Estadão. Mas não se trata da Nilla Business e sequer é citada no complexo empresarial descrito na reportagem, que envolveria rede de restaurantes, uma linha aérea e 30 escolas de inglês. Que rede de restaurantes é essa? E essa linha aérea tem nome e destino? Questões elementares.

Apuração qualificada

Na Índia, no endereço dado, está a empresa Spiritual Communications, no 2ND Floor Super Shopping Centre Opp-V-Mart SG Puram, Faizabad Rd, Sanjay Gandhi Puram, Lucknow. Infelizmente não se consegue obter maiores informações, até mesmo por falta de numeração ou outra especificação no endereço fornecido no site da Nilla Business quanto a seu escritório na Índia. Ficaram então as semelhanças.

Já com tantas arestas sem aparar é inútil pedir que se procure algo como CNPJ, pois apesar de manter seus sites, endereços e colaboradores no Brasil, a empresa pertence às terras britânicas e provavelmente o tal registro de pessoa jurídica seria ineficaz para conter a barriga.

Para finalizar a história do marajá, a reportagem generosíssima traz que entre suas empreitadas existe ainda “algumas apostas no Brasil, como a escola de inglês Achieve Languages, aberta em 2012 e que já contabiliza 30 unidades. O projeto prevê a transformação de escolas de inglês ‘sem bandeira’ em membros do método Oxford de ensino”.

Embora no site da Achieve Languages, que tem 18 unidades elencadas em sua página na web, também não se forneça telefone ou e-mail para contato, não está especificado de onde vem esse investimento e quem o administra. Por outro lado, no rol dos clientes na Nilla Business inexiste qualquer menção sobre as escolas Achieve Languages, embora surja a concorrente CNA e a Unifesp.

Como não há gênio da lâmpada, nem Aladim ou similares, seria interessante os jornais se preocuparem em reduzir suas barrigas. Um bom regime para se prevenir os dissabores dos erros grosseiros é apurar as informações e qualificar suas notícias. Entretanto, não custa perguntar: o jornal vai assumir o erro e reparar a informação para seus leitores? Tenho dúvidas se a autocrítica chegaria a tanto. Não dá para esquecer que erros em jornalismo sempre têm consequências, a maioria desastrosa.

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Júlio Ottoboni é jornalista científico

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