sábado, 5 de julho de 2014

R$ 2800 por ingressos falsificados: A saga Argentina para ver a Copa

Por Federico Bianchini, Revista Anfibia traduzido por Mídia NINJA
Creative Commons

Andrés e seus dois amigos chegaram cedo ao estádio Mineirão. Estavam em Belo Horizonte havia dois dias, vinham das praias do Rio, de cerveja e paisagens intensas, adrenalina pela vitória agonizante sobre a Bósnia, euforia e álcool dos festejos, suores agitados.


No sábado, 21, a seleção jogava com Irã e os três, de Federación, Entre Rios, estariam ali, torcendo até perder a voz. Argentina tinha que jogar de outro modo, não tão atrás, Messi teria que aparecer, dar-se conta de quem é e onde está, romper; segurar a onda: fariam valer os mil e oitocentos dólares que pagaram pelos ingressos.

"Brasileiroooooo, diga-me o que se senteeee, terrrr em casa seu papaaaai", cantava Andrés, com a bandeira da Argentina no pescoço, o sol nas costas, a pele emocionada e a convicção de que poderia contar a seu filho, talvez seus netos, o que é viver um mundial. Por que não há forma de explicar o que é sentir-se argentino, não importa o que paguem para poder estar ali. Faltava pouco para o meio-dia, para o poço de nervos, o golaço do Messi. Seus amigos cantavam e aplaudiam.

O sol bem forte sobre a calçada que rodeava o estádio, a revista, a entrada. Quando o homem o olhou nos olhos, Andrés supôs que algo ia mal. Seus amigos tampouco puderam passar. Alguns policiais os disseram que os acompanhassem. Checaram se tinham antecedentes e os convidaram a ir com eles a Fan Fest, onde poderiam ver a partida de uma forma mais legal do que com ingressos roubados.

- Até o outro dia, em nenhum momento pensamos que havíamos sido roubados.

***

O centro de vendas oficial da FIFA em São Paulo está montado nas imediações do ginásio "Geraldo José de Almeida", conhecido também como Do Ibirapuera, o centro desportivo municipal mais importante da cidade. Perto do mini estádio projetado para 15 mil pessoas e da quadra de futebol, a pista de atletismo tem uma espécie de caixa pré-fabricada com ares de aeroporto onde os voluntários da FIFA, de impecáveis uniformes esportivos e enormes credenciais turquesa, sorriem e orientam os turistas. Na sala de vendas, atrás de um vidro, um homem se entedia sozinho. Explica que tem mas não tem mais entradas, que talvez o que se pode fazer é checar no site da organização e ver se alguém devolve um ingresso. Sugere: tem que ser rápido, há muita gente clicando. Na sala de retirada de ingressos, três moças atendem aos que vão buscar suas entradas. Mas pra frente, um Fuleco de pelúcia de dois metros sorri rígido: não deixa de olhar de onde se cobram os ingressos.

Faltam dois dias para o jogo e do lado de fora, vários argentinos tentam conseguir uma entrada. Dois brasileiros se aproximam e os perguntam se já têm, se os interessa, mas quando veem este cronista com seu caderno de notas, um bloco com espiral Dolphin Office de papel extra reforçado, se fazem de desentendidos, dizem que hoje já não tem mais entradas, que está muito complicado conseguir, aparentam azar.

Rodolfo, camisa polo rosa, óculos de aros vermelhos, jeans e tênis, os observa de longe

- Tem que ter cuidado - disse

É de Córdoba e se queixa do negócio que fez com seu primo: por 50 mil pesos conseguiu um pacote que incluía ingressos para os três primeiros jogos, alojamento, jantar, almoço e café da manhã. Ele, que veio com seu filho de 17 anos, independente das agências de viagem, pagou entre 800 e 1000 dólares por cada bilhete nos demais jogos.

- Não são confiáveis. Nas primeiras partidas, o que faziam era vender uma entrada e denunciá-la como roubada. A eles davam uma outra e anulavam a sua: na porta do estádio te diziam que já não poderia mais entrar. Depois, a FIFA se deu conta da trapaça. Agora, se denuncia o roubo, nada acontece.

Rodolfo não gosta de futebol. Tem 43 anos e trabalha em uma empresa importadora. Se emociona com os carros e as motos. Se está vendo a televisão, e encontra um jogo, tac tac, muda de canal.

- Uma amiga da minha mulher disse que sou o marido perfeito. Aos domingos não torço nem nada. Mas o meu guri sim, Tomás, gosta de futebol.

- Seu sobrenome, como é?

- Tenho uma confusão impositiva com a AFIP - Administração Federal de Ingressos Públicos - que nem te conto. Melhor, coloca Rodolfo.

Disse que na Argentina a coisa está parada. Que há oito meses as importações não se movem. Não sabe se poderá ir à Rússia em 2018, mas que o dinheiro que tem gasta agora. Para a partida contra Suíça, não conseguiu entradas: está disposto a pagar mil dólares por cada ingresso.

Marietta Piragine se envergonha de falar castelhano. Em meio a uma frase correta se contém e pergunta se está certo falar "hizo" ou se a palavra é outra, teme errar a conjugação e isso a atrapalha com a língua.

Paulista, cantora lírica, professora de ballet, não gosta de futebol, mesmo não estando na sala olhando a televisão escuta seu namorado gritar: "O azar dos pênaltis", normalmente caminha tranquila até a sala de estar. Olha o nervosismo dos jogadores, a cara de preocupação dos técnicos, escolhe uma das duas equipes e torce para essa.

Dias antes da festa de inauguração, recebi um e-mail onde comentavam que a organização do evento buscava bailarinos para participar do ato.

Ela respondeu curiosa. Pensou, poderia ser interessante. Quanto pagariam?

Não, responderam, não se pagava nada.

Uns dias depois, voltou a escrever. Talvez, se lhe dessem algum ingresso para convidar seu namorado para o jogo de abertura, poderia ficar e ver sua equipe enfrentando a Croácia.

Não, responderam, depois do ato deveria ir embora do estádio.

As mesmas perguntas: Quanto pagam?, Tem entradas?, fizeram os demais bailarinos contratados.

Queriam que eles trabalhassem de graça?

A resposta não variou. E as duas companhias mais importantes de São Paulo disseram então que nenhum dos seus bailarinos iria ao evento.

No ato, participaram alguns alunos, dançarinos amadores.

Aqui as entradas custam muito dinheiro.

***

Javier também não irá dizer seu sobrenome, melhor não.

De pé, junto a entrada deste pré-fabricado da FIFA no "Do Ibirapuera", nega com a cabeça. Tem a camiseta reserva de River Plate, um filho que mede um metro e noventa e uma esposa que diz que esse mundial está bastante desorganizado: eles já foram à Alemanha ("conseguimos os ingressos pela internet antes dos jogos"), e à Africa do Sul ("lá as pessoas têm menos dinheiro e negociar os preços de revenda era mais fácil").

Javier não olha no olho quando fala: está concentrado em outra coisa. Está concentrado na gente que sai com seus ingressos e, no meio de uma frase, da um passo de lado e diz:

- Você tem ingresso?

Durante o breve diálogo, saíram cinco pessoas. Todas lhe disseram que não: dois desviaram. Apesar de Javier ter um aspecto bonachão, de homem tranquilo, guardavam as entradas no bolso. Quem sabe, por via das dúvidas.

- Você tem ingresso?

Na quinta, 19, Javier passou seis horas no Boulevard Shopping de Belo Horizonte. Lá se retiravam as entradas para a segunda partida da Argentina.

- Você tem ingresso?

Cada um que saía ele perguntava a mesma coisa.

Na sexta, 20, outras cinco horas.

- Você tem ingresso?

Para o jogo entre Argentina e Irã, uma entrada categoria quatro, custava para os brasileiros 55 reais. Uma entrada categoria um, 220 dólares.

Depois dessas 11 horas, de vai saber quantos "Você tem ingresso", Javier conseguiu seis. O mais barato pagou 400 dólares, o mais caro: 700.

- O preço dependia da pessoa. A alguns colocava medo, assim que eu os dizia se queriam conversar fora do shopping. Somos um grupo de 10 argentinos. Agora só nos faltam entradas.

- Você tem ingresso?

Da varanda da casa de Miguel Ricci, na Vila Olímpia, se veem as sombras dos edifícios, as luzes das antenas, vermelhas brancas pontuais, que discordantes parecem seguir uma sequência complexa e incompreensível. A essas se somam outras, verdes, distantes e quietas.

Nascido em Paris, de mãe brasileira, argentino por escolha, Ricci viveu em Buenos Aires até um ano e meio atrás, quando se mudou para São Paulo. Trabalha como treinador de basquete e tradutor português-espanhol.

- Às vezes te angustia um pouco - disse na varanda. Olha para lá e vê cimento, olha para o outro lado e tem mais prédios. Parece que estivera preso.

Vila Olímpia é um dos bairros mais caros da cidade. Tem supermercados como o Saint Marché e o Empório, onde se vendem produtos importados, que não estão em outros lugares. Miguel vive com sua namorada, brasileira, em um apartamento dos pais dela. De despesas, pagam 600 reais (uns 200 dólares).

- Aqui tem de tudo. Restaurantes de comida japonesa, peruana, mexicana, tailandesa, o que quiser.

Os bares, os teatros, a oferta cultural. Mas o tamanho também joga contra. Se não tem carro, complica muito. O trânsito te deixa louco: de bicicleta não pode ir porque passam por cima. Tampouco é uma cidade para caminhar, como Buenos Aires. Aqui você vai por 30 quadras e não sabe onde termina: não tem quadras paralelas e tem bairros no alto e outros muito abaixo.

Fanático de Newell's Old Boys, viu todas as partidas do Mundial pela televisão. Acredita que a Argentina não pode depender tanto de Messi. Pensa que o time defende mais ou menos e retrocede, mas a esperança é a última que se perde (os corpos mortos normalmente não conservam a ilusão).

Há alguns dias, fui ao Ibirapuera para averiguar sobre a possibilidade de conseguir um ingresso. Me cobraram mais de 700 dólares, penso que estavam loucos.

- Para ver o Mundial aqui, tem quer ser rico ou Barrabrava (grupo de torcidas organizadas conhecido como os "Hooligans" argentinos)

***

Andrés, o de Entre Rios que ficou para fora da partida de Belo Horizonte, parece nervoso. Me conta que os policiais o trataram bem, mas se preocupa que tenham pegado seus dados. Não sabe se seu nome e sobrenome ficaram com algum registro na polícia brasileira. Usa uma camiseta surrada e o cabelo despenteado, como se tivesse acabado de acordar ou seus costumes não incluíam o uso de um pente.

Um de seus amigos, de camiseta do Arsenal, óculos pretos, na parte de fora do ginásio do Ibirapuera com a mão no bolso. Caminha rígido, como se tratasse de simular tranquilidade.

- Aqui os temos - diz e tira apenas a mão: mostra a pontinha de um ingresso

- E Walter? - pergunta Andrés.

- Fizeram ele de refém, os brasileiros que nos deram os ingressos - disse o outro rindo: não fica claro

se estava se divertindo ou nervoso -. Me disseram para entrar e checar com os da organização que

são boas.

- Quando pedem?

- 5600 reais pelos dois.

5600 reais são 2500 dólares.

- Que foi? Tá desconfiando? - pergunta o outro.

- Vamos lá.

Eles caminham até o pré-fabricado.

A alguns metros, o de Mar del Plata Sergio Ledesma, negocia com um boliviano de camiseta da Holanda, que acaba de comprar uma entrada mas não sabe se fica em São Paulo ou viaja ao Rio. De cabelos grisalhos, Ledesma tem um corpo que oscila entre o imponente e o obeso. Veio ao Brasil com sua mulher e neta. Antes de viajar comprou entradas para o jogo com Nigéria e outras para as quartas de final. Por cada uma pagou mil dólares. Para Brasília, viajará de avião. O boliviano disse que não sabe, mas deu seu número de telefone e assim poderia contatá-lo por whatsapp.

Andrés e o de camiseta vermelha e óculos pretos se aproximaram. Ledesma os perguntou como foi.

- Parece que são tranquilos - disse Andrés.

Disse como se isso significasse um problema.

- Mas não sei. Já nos ferraram uma vez.

- Tem que ter muito cuidado - disse Ledesma e conta de três de Córdoba que compraram entradas idênticas às reais, mas piratas -. É certo que as conseguiram a 400 reais quando todos pediam 1200.

- Vamos buscar Walter - disse o de óculos preto.

Já estão a caminho da saída quando Ledesma grita:

- Sorte com isso!

Como se algo estivesse por acontecer, os brasileiros que ofereciam entradas saíam pela porta.

A polícia estaciona sua moto no meio do espaço. Tira o capacete, e olha os que ficaram. São poucos. Vários vestem a camisa da seleção argentina.

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