sexta-feira, 17 de outubro de 2008

lembrando flusser

Por um período de poucos dias o curso do ano é interrompido para parcela apreciável da população brasileira. A correnteza histórica dos dias e das semanas passa a formar represa, chamada "Carnaval", e passa do tempo histórico para o tempo da eterna repetição do refrão sincopado. As máscaras impostas pela história sobre a gente humilde caem e revelam a sua verdadeira face. O aparente ascensorista é revelado acrobata, a aparente vendedora de loja é revelada princesa. Rasgado o véu da história aparece a verdade, o substrato a - histórico da sociedade brasileira. O seu "paganismo", a sua "negritude".

Sem dúvida, o Carnaval, embora tenha origem "pagã", não é africano. Talvez seja fortemente adubado por elementos etruscos. O seu parentesco com os "Lupernalia" romanos o sugere. Como também o fato de ter ele triunfado, sob capa transparente cristã, no norte italiano renascentista e barroco. Em terras, portanto, etruscas. Quando resultou em comédia dell'Arte naquela precursora bem estruturada e, no entanto, improviso Happening, do Living Theater, e da Obra Aberta.

Mas o Living Theater não é Carnaval brasileiro. E embora os etruscos tenham um curioso sabor de sacralidade sensual e violenta, que Lawrence captou e que pode lembrar o Niger, os fundadores das escolas de samba não são os etruscos. Muitos mais o são as fraternidades tribais da costa ocidental africana. O Carnaval brasileiro síntese entre etruscos e bantos? Mas se o for, é síntese perturbadora.

A margem esquerda parisiense descobriu a África no começo do século, e procurou assimilá-la. Picasso elevou a África não histórica no nível da consciência histórica branca. Esta é a síntese picassiana: a história ocidental abarca a África com seu abraço. Não é a síntese carnavalesca. Nela a Grande Mãe África absorve a - historicamente do Ocidental. O caso de Picasso é o projeto ocidental, ao expandir-se, se abre ao Não-ocidente. O caso do Carnaval brasileiro é este; o projeto ocidental é absorvido, e deixa de ser projeto. E não é apenas o caso do Carnaval brasileiro. Também o é o caso de toda futura cultura brasileira, a ser porventura realizada.

Que as aparências não nos enganem. O Carnaval dos clubes burgueses não é Carnaval brasileiro. É Carnaval picassiano sem a originalidade e a genialidade de Picasso. Como não é cultura brasileira o que atualmente assim se mascara. Porque o Carnaval brasileiro não é um pôr máscaras, mas um tirar máscaras, e as máscaras ocidentalizantes ainda não caíram da face da nossa cultura. O Carnaval ainda não veio.

Publicado em "Folha de São Paulo" em 12/02/1972

Vivemos um mundo onde as máscaras não são postas e sim tiradas a cada novo olhar domesticado por nossa vida carnavalesca. Viva o carnaval diário tupiniquin! Tupy or not Tupy...

Bob Rabbit
direto da terceira margem do rio , olhando para o andar 3 1/2...

2 comentários:

Pedro Zambarda disse...

Interessante o conceito de máscara e da cultura brasileira nessa matéria de 1972.

Abraço, professor.

Bob Rabbit disse...

pois é. estamos iguais a 1972

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