quinta-feira, 11 de setembro de 2008

1602

A primeira obra de Neil Gaiman para a Marvel

O que fazer para criar um novo clássico dos quadrinhos? Como, no começo século XXI, criar algo para ser lembrado por décadas, justamente em uma época que vivemos de rever clássicos oitentistas? Foi essa a pergunta que Joe Quesada se fez no início dos anos 2000, quando se tornou editor-chefe da Marvel. A resposta para tal pergunta foi a contratação de um nome inquestionável no meio, algo que deixaria o mercado de histórias em quadrinhos em êxtase. E foi o que Quesada fez, contratando simplesmente um dos nomes mais conceituados da história para escrever para a Marvel: Neil Gaiman.

Já fazia algum tempo que o criador de Sandman vinha sendo cortejado pelas grandes editoras. Embora Neil Gaiman tenha tido uma longa parceria com a DC Comics, seus trabalhos foram sempre foram para o selo adulto da editora, a Vertigo. Suas obras para os principais personagens das grandes editoras foram aclamadas participações especiais em pequenos contos ou edições de luxo de 60 páginas. Nunca algo realmente grande, e mais importante, nunca algo para a Marvel. E Joe Quesada, sabendo disso, contratou Gaiman a peso de ouro, dando carta branca ao escritor para brincar a vontade com o universo Marvel, além de ter uma ampla opção de artistas com quem trabalhar. E Gaiman abusou de tal liberdade.

Com todos os personagens da Marvel a sua disposição e sem ninguém vigiando de perto seu trabalho, Neil Gaiman recriou o universo da editora de forma inovadora, situando tudo 4 séculos antes, no ano de 1602, título da obra. A premissa assustou muitos fãs quando foi revelada, alguns até disseram que Gaiman havia enlouquecido, mas o tempo lhe deu crédito. Com um enredo situado na Inglaterra do começo do século XVII, o chefe da agência da espionagem SHIELD, Nick Fury, se torna Sir Nicholas Fury, chefe de espionagem da rainha Elizabeth I. Com a ajuda do médico real Stephen Strange (Dr. Estranho nos quadrinhos) Fury tenta desvendar estranhos acontecimentos que vêm causando o pânico na população, que teme o fim do mundo. Qualquer revelação além desta básica premissa estragará a intrincada história criada por Neil Gaiman. Grande parte do repertório da Marvel é usado, mas, surpreendentemente,sem se prender às grandes marcas. Heróis famosos como Hulk, Homem de Ferro e Wolverine foram deixados de fora, enquanto a grande marca da Marvel, o Homem Aranha, foi renegado a um simples papel de coadjuvante, com Peter Parker (Peter Parquasch na história) como um adolescente sem poderes e ajudante de Fury.

No entanto o uso de outros personagens consagrados pelos fãs, apenas lembrados por parcela do público ou até mesmo esquecidos mostram a grande força de 1602. Matt Murdoch se torna a própria essência do Demolidor, encarnando um agente mercenário de Nicholas Fury que se torna uma lenda por matar sem ser visto e pela suposta ausência de medo. O Quarteto Fantástico ganha especial destaque após a segunda metade da HQ, nos mostrando um Dr. Reed Richards fascinante, como há anos não se via. O X-Men e Charles Xavier, com nomes alterados, mas ainda reconhecíveis, tiveram seu grupo diminuído para a apenas 6 jovens, e sem o já citado Wolverine. No entanto Cyclope, Anjo e Jean Gray ganham especial destaque, com uma subtrama curta, porém fascinante. E ainda surge a figura de Thor, personagem muito popular nos EUA, mas que não conseguiu muita receptividade por aqui. Ainda como antagonista surge a figura do Dr.Otto von Doom, eterno vilão nas histórias do Quarteto Fantástico, ocupando toda a primeira metade da história como um rival imponente, mesmo com a presença discreta, mas ameaçadora, de Magneto encarnando um alto sacerdote da inquisição. Fechando o ciclo de personagens principais, Gaiman exercita novamente seu talento ao criar Virginia e Roszjhas, uma garota e um índio vindos da América para uma audiência com a rainha Elizabeth. É sobre a garota que cai a suspeita de ser a causadora dos estranhos eventos. Neil Gaiman os cria a partir do zero e consegue de forma magistral integrá-los a um universo de personagens que já são atraentes em essência.

Mas Neil Gaiman se supera mesmo na mistura de história real com ficção. 1602 foi um complicado ano para a Inglaterra, que vivia o fim do reinado absolutista de Elizabeth I e a falta de um herdeiro deixava todos apreensivos. Além de Virginia, personagem que de fato existiu, Gaiman, como bom inglês que é, trabalha a figura de James IV, rei da Escócia que assume o trono com a morte de Elizabeth. Criando um vilão de caráter e inteligência fracos, mas com grande poder, Neil Gaiman transfere para o ano de 1602 toda a paranóia americana do século XXI. Embora não seja exagerado demais fazer tais comparações com qualquer obra criada nos dias de hoje, é impossível não lembrar das hostilidades aos árabes nos EUA pós- 11 de setembro lendo a segunda metade da obra.

Se a própria história de 1602 já não sustentasse sozinha uma grande HQ, pode-se dizer que Neil Gaiman acertou em cheio ao escolher o desconhecido Andy Kubert para desenhar a trama. Andy Kubert exercita aquilo que se costumou chamar de traço americano clássico, sendo extremamente detalhista em closes e mais rebuscado em quadros distantes. É uma forma de transmitir realismo, mas sem perder certa liberdade de criação. Tal escolha pode ser considerada uma surpresa, já que Gaiman ficou famoso por trabalhar com artistas de traços mais abstrato e rebuscado em Sandman e Violent Cases, no entanto percebe-se que tais traços não combinariam com o estilo de época empregado em 1602. Com uma capa que ressuscita a famosa foto dos conspiradores de Guy Fawkes, Kubert se mostra essencial na compreensão da trama, chegando a arrancar de Neil Gaiman o comentário de que “se tornara irrelevante perante o trabalho de Andy”. Embora todos os personagens tenham sido trazidos de forma crível ao visual de 1602, com roupas de época e sem qualquer tipo de exagero, a construção de Nicholas Fury, Stephen Strange e Otto Von Doom saltam aos olhos.

Todas as cenas de ação são feitas com maestria, especialmente uma seqüência de quadros que retratam em slow motion movimentos de Mathew Murdoch. Este inclusive é o grande talento de Kubert em 1602, criar uma sensação constante de movimento em uma HQ com ritmo crescente, sem em nenhum momento se perder na grande quantidade de personagens presentes, muitas vezes no mesmo quadro. Mas o momento de genialidade se revela mesmo na utilização de gráficos antigos, remetentes aos quadrinhos da década de 40, no momento de recriar a história de determinado personagem.

Quando Neil Gaiman anunciou que escreveria sua primeira história para a Marvel muita expectativa foi criada, e o autor inglês mostrou novamente que não costuma desapontar fãs e críticos. Com uma história supostamente despretensiosa, mas ao mesmo tempo revolucionária (por mais contraditório que isso pareça), Neil Gaiman deu um novo fôlego às minisséries da Marvel. Com o álbum encadernado que chega ao Brasil pela Panini, pode-se ter noção, sem qualquer tipo de interrupção, a grandiosidade que o trabalho alcança. A edição ainda vem acompanhada de um prefácio escrito pelo próprio Neil Gaiman, um making-of com artes iniciais e uma reprodução das cartas entre Neil e Andy. Enfim, uma oportunidade imperdível de ler a única produção criada pelo escritor mais celebrado dos quadrinhos na atualidade para a Marvel.

Um comentário:

Pedro Zambarda disse...

Ficou boa a resenha desse quadrinho nada convencional =O

Neil Gaiman é realmente criativo.

Posts mais lidos