domingo, 28 de dezembro de 2008

Entre companheiros e comandos


Diretores de cinema quase sempre buscam experiências novas na arte que promovem ou tentam refletir suas próprias vivências nas grandes telas. Lúcia Murat é um exemplo do segundo caso, pois, desde Que Bom Te Ver Viva, documentário de 1989, ela busca representações da ditadura militar brasileira que a marcou com torturas e traumas.

Quase Dois Irmãos, filme de 2004, é outro exemplo claro, mas que utiliza outras vias e dá um aspecto muito mais complexo para nossa história. O enredo se separa em três partes - 1950, 1970 e o presente (que, na verdade, é por volta dos anos 2000) - e tem os mesmos traços de outros filmes da cineasta, como Doce Poderes, de 1997, no qual ela faz uma alegoria do escândalo da ascensão de Fernando Collor para a presidência da república apoiado pela Rede Globo de Televisão.

No caso desse filme, o foco é a história do Comando Vermelho, que comanda o tráfico de drogas nas favelas do Rio de Janeiro. Através da história de Jorginho, filho de um sambista e ladrão comum, e de Miguel, filho de outro sambista mais abastado e ladrão político, a autora traça uma possível relação entre a organização criminosa e presos políticos dos anos 70, principalmente porque ambos dividiram celas no presídio de Ilha Grande, cenário principal do filme e, atualmente, desativado.

Jorginho, por conhecer Miguel desde a infância, é um dos poucos presidiários pobres que consegue ter acesso privilegiado ao grupo de comunistas que estabelecem uma verdadeira organização sob a repressão do governo. Flashbacks de 1950 mostram como ambos eram ligados pelas parcerias musicais que seus pais faziam, gerando um contato entre classes sociais (e étnicas, pois Jorginho é negro) incomuns na época.

1970 acaba sendo o período histórico mais importante retratado no filme, enquanto os anos 2000 mostram um Miguel já transformado em senador que visita Jorginho no presídio de segurança máxima, em Bangu. O amigo pobre é chefe do Comando Vermelho, que está colocando risco a vida da filha do político, Juliana, assídua frequentadora de bailes funks e totalmente avessa ao pai.

Esse presente foi possível graças ao que Jorginho aprendeu na prisão com Miguel - organização, cooperativismo e ordem entre os colegas presos. Jorge apenas não tolerava a compaixão que o amigo tinha quando as pessoas cometiam erros, se mostrando agressivo e, na maioria dos casos, letal contra a pessoa que o prejudicou. O preso comum, aos poucos, começa a eliminar quem pode prejudicá-lo e gera uma dissidência dentro de Ilha Grande, criando inclusive um muro de concreto separando presidiários e os políticos.

A diretora acerta ao criar um roteiro que, diferente de outros filmes do gênero, não "endeusa" a esquerda brasileira, dando inclusive um clima de reflexão para as pessoas que investigam a fundo a história, mostrando que as relações sociais vão muito além da classe social. No entanto, a falta de linearidade entre os períodos retratados, fazendo constantes voltas sem ganchos mais claros entre as cenas dá um aspecto confuso ao filme. Falta, também, uma menção mais clara sobre o Comando Vermelho. Murat mostra as ações dos criminosos, como eles reprimem jovens com vida diferente da deles - caso de Juliana, que faz sexo com o traficante e, em seguida, é descartada -, mas resume a atuação do crime organizado ao celular de Jorginho, dando um ar superficial para a história do bandido.

Atores diferentes para cada período retratado, como Caco Ciocler na parte dos anos 1970 e Werner Schünemann para o presente, ambos no papel de Miguel, enquanto Jorginho é interpretado por Flavio Bauraqui e Antônio Pompêo, causam uma diferença gritante de interpretações. Ainda assim não compromete, realmente, a mensagem final dos personagens.

O longa foi vencedor do Prêmio do Festival de Mar Del Prata, na Argentina, em 2005. Vale uma conferida, mesmo que você não goste muito desse assunto abordado.

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