sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Crime sem passado ou futuro

O Sol, um revólver, a indiferença perante à perda da mãe e o subdesenvolvimento da Argélia. Em uma ficção breve, com frases secas e personagens enigmáticos, o escritor, jornalista e intelectual pied noir (argelino de origem francesa) Albert Camus marcou o século XX com o livro O Estrangeiro (nome original: L´Étranger), em 1942. Seu enredo aborda a vida do personagem Mersault, um homem que comete um cruel assassinato sem uma única justificativa. Essa história rendeu ao autor o Prêmio Nobel de Literatura de 1957, sendo o primeiro africano a receber tal reconhecimento.

Começando por um velório, que deveria supor um sentimento de angústia, somos apresentados ao protagonista que vê a situação de uma forma mais sistemática. "Tudo se passou, então, com tanta rapidez, certeza e naturalidade, que já não me lembro mais de nada" exclama Mersault, sem nenhuma forte afirmação de lamento ou perda. No desenvolvimento da história, ele possui uma relação supostamente sentimental com a namorada Marie, mas a descrição de seus encontros revela um interesse mais carnal do protagonista.

Com uma narrativa que parece retirar os fatos do cotidiano, como uma espécie de diário, a trama segue até uma praia argelina onde Mersault, Marie e os amigos Raymond e Masson são abordados por um grupo de árabes. O confronto na praia termina com o protagonista disparando cinco tiros de seu revólver contra uma vítima desarmada, sem ter aparentemente um motivo plausível para tal reação. Um tiro derruba o suposto inimigo e mais quatro são disparados contra um corpo inerte. "Compreendi que destruíra o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de uma praia onde havia sido feliz" narra Mersault, fazendo uma descrição que transforma o Sol, o calor e seu ato horrendo em um único retrato, com um significado que não está descrito nos tribunais que vão julgá-lo.

Essa mudança central no roteiro, que se torna fonte de todas as situações na prisão de Mersault, mostram que o personagem não se arrepende do que fez, mesmo diante da sociedade e da cobrança de uma ética em sua recuperação. E ele ainda teoriza sobre a vida na prisão, tendo um raciocínio totalmente fora da normalidade: "compreendi, então, que um homem que houvesse vivido um único dia, poderia sem dificuldade passar cem anos numa prisão".

O que Mersault revela, sendo uma criação distinta de Albert Camus, é que ele é um indivíduo que vive o chamado "estado de absurdo", explorado tanto na filosofia como nas artes, especialmente a dramaturgia. A pessoa absurda não está ligada ao passado histórico e cultural e, por isso, é livre de qualquer lógica e pode cometer qualquer ato impensado. Quando não há ligação com o futuro, essa pessoa também deixa de temer possíveis consequências de seus atos.

Do crime aos tribunais, Camus mostra nesse romance o retrato de seu tempo: ele foi um jornalista engajado na época da Segunda Guerra Mundial e das bombas atômicas. Mersault é a encarnação das aberrações que surgiram no século XX, fruto de um pensamento que rompeu com as tradições da modernidade, apesar do absurdo não ser um tema exclusivo de determino período histórico.

Pode-se condenar Mersault por seu assassinato, mas sua mente não sente culpa ou remorso. Ao transferir seu ponto de vista ao do personagem, porém, não podemos mais recriminá-lo, especialmente porque ele não acredita na justiça dos homens. "Durante as falas do promotor e do meu advogado, posso dizer que se falou muito de mim, e talvez até mais de mim do que do meu crime. Eram, aliás, assim tão diferentes os discursos?"

Um bom livro para ler em uma única tarde, tendo pouco mais do que 120 páginas em média, com frases e parágrafos curtos e diretos, embora o personagem seja fruto de análise profunda para muitos outros processos, situações ou mesmo épocas distintas.

Um comentário:

Nathi disse...

Eu li num ato de rebeldia (pois a semana estava cheia a ponto de ter que ver na agenda um horário livre pra beber água), e em algumas horas de três dias seguidos eu devorei-o. É um dos livros que mais me surpreendeu e mesmo assim ainda pareço estar parada na praia com o "assassino" no momento da delirante vertigem do calor.

Nem sei mesmo o que dizer sobre o livro, sou ignorante no assunto, admiradora das palavras.

Gostei do blog!

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