quarta-feira, 4 de junho de 2008

O “artesão” amazonense das letras

Por Pedro Zambarda de Araújo
2º Ano de Jornalismo Turma B

A voz é vigorosa, grossa, condizendo com seus olhos profundamente obscuros, mas não opacos, nem vazios de emoção. O rosto dele é redondo, coberto por pequenos cachos totalmente brancos em uma feição desgastada pelas adversidades da vida, com dobras e olheiras, mas que ainda conservam uma jovialidade serena. Falando em uma conversa “de corredor”, Milton Hatoum me recomenda autores norte-americanos de grande influência para o jornalismo, como o falecido crítico da situação da Palestina e de Israel, Edward Said, e a maior figura da esquerda nos Estados Unidos, Noam Chomsky.

Essas indicações de leitura não são gratuitas: como ex-docente da Universidade da Califórnia em Berkeley, o contato com intelectuais dessa potência mundial foi inevitável. Embasado nos textos deles, Hatoum é extremamente crítico sobre as guerras que envolvem os Estados Unidos e nações ditas “terroristas”. “O Iraque não esteve em guerra, ele foi invadido pelos americanos. É muito fácil acusar pequenos países de terrorismo quando, na verdade, o verdadeiro terrorista é você” acusa veemente o escritor, que tem origem libanesa. Sua identificação com o oriente, principalmente com a área do Oriente Médio, torna tanto os temas de suas obras diferentes quanto enaltecem a sua fisionomia enigmática como pessoa crítica.

O cotidiano de Hatoum reflete sua importância como autor. “Trabalho em uma espécie de escritório de segunda a sábado, das 7hrs até às 13hrs, sem computador ou qualquer meio de comunicação e, dessa forma, com isolamento total” confessa, revelando mais uma de suas peculiaridades na criação de crônicas para o Terra Magazine e de próprios livros. Esse espaço de trabalho do escritor é totalmente desconhecido do público, um verdadeiro segredo. “Fica na rua de minha casa, a Ferreira de Araújo, no bairro de Pinheiros. Mas não posso revelar pra você o número. É um lugar muito feio” frisou Hatoum, sem nenhuma chance dizer a localização do seu reduto inspirador.

Apesar da grande personalidade artística que ele é, fazendo palestras em locais como o Acre até o Rio Grande do Sul, poucas pessoas ocupavam os bancos da palestra no SESC Vila Mariana no dia 25 de abril, o que permitiu que o artista falasse com o público mais intimamente. Milton é famoso e bem quisto entre os escritores contemporâneos, premiado com três Jabutis de Literatura em seus três primeiros livros: Relato de Um Certo Oriente; Dois Irmãos, que ganhou uma versão de bolso; e Cinzas do Norte. Há poucas publicações dele, mas cada uma foi gerada e refletida com um cuidado de um artesão. Esse “artesanato” de Hatoum é explícito: “um parágrafo por dia é um ritmo apressado, para mim. Quando escrevo demais, sempre desconfio. Sempre acho que há algo errado e paro pra revisar o que fiz”.

É dessa consciência crítica que Milton gera seus textos, e que também são influenciados fortemente por suas raízes bem brasileiras: nascido manauense em 1952, ele teve bastante contato com a cidade de São Paulo durante a ditadura militar de 1964 até 1985, quando era estudante. “No entanto, ao contrário dos manifestantes, eu não tinha partido político. Era um rebelde mediano que pichava contra o regime repressor. Fiz coisas que eu achava corretas na época”.

Cinzas do Norte, um de seus livros, publicado em 2003, traz essa realidade do estado do Amazonas dentro do contexto ditatorial, o que nenhum autor brasileiro frisou. Com a história de Raimundo, menino abastado, filho de um comerciante repressor chamado Lavo, que é aliado dos militares, Milton tece um conflito familiar que metaforiza a realidade brasileira nos chamados “anos de chumbo” (da ditadura, em seu período mais radical), marcado pelas presidências de Costa e Silva e Médici.

“Ditadura militar não aconteceu apenas no eixo sul-sudeste. Embora eu tenha passado muitos anos desse período em São Paulo, coloquei os conflitos que acabaram com Manaus de antigamente no livro” frisou o escritor, relatando esse passado com emoção contida, sem desabar em lágrimas, mas claramente alterado ao falar sobre a degradação de sua terra natal.

Quando falei para ele que o jornalismo, muitas vezes, conta mais mentiras do que a ficção, ele concordou e, juntamente comigo, fez diversas críticas ao tipo de imprensa que temos no país. Apesar dos protestos, ele estranhou um estudante de comunicação questionar os próprios veículos. “Desculpe, não queria ser rude, mas apenas mostrar que há muita coisa errada nos jornais de hoje”. Nessa pequena atitude, percebi que Hatoum pode ter uma posição bastante sincera. O amazonense é mais preocupado em tecer algo construtivo e claro para qualquer pessoa, sem ferir a opinião de ninguém a esmo.

Desde o primeiro romance, Relato de um Certo Oriente, de 1989, Hatoum escreve sem utilizar computador, recorrendo apenas ao papel e caneta. Concebe as histórias buscando suas memórias pessoais e ao meio ambiente manauense. Sua descrição para o ato de estar escrevendo é como alguém que verdadeiramente aprecia a natureza. Ele, que mesmo tendo viajado por vários locais e ministrado aulas de francês nos Estados Unidos, tem um carinho especial e um sentimento forte por sua terra natal, que acolhe segredos que o resto do Brasil não sabe e sequer desconfia.

Esse cuidado na escrita continua expresso em Órfãos de Eldorado, seu último livro, lançado em março deste ano. Mesmo sendo seu primeiro trabalho encomendado, com um espaço delimitado em caracteres, o sentimento da terra transparece em uma história corrida sobre os mitos amazonenses e a realidade de uma “Eldorado” real.

“Embora escrever Órfãos tenha sido uma experiência brusca, que não pretendo repetir, sempre gero outras histórias com o fim de um livro” disse o autor. Tais palavras ensinam o tipo de homem que Hatoum é: um escritor que não se encerra apenas em uma obra, que possuí um texto que sempre gera outro, um compositor que sempre tem mais músicas no repertório do que no concerto.

Suas feições rígidas, na realidade, revelam a fortaleza criativa que ele tem dentro de si, além das memórias de um Amazonas que nós brasileiros não conhecemos, mesmo estando em nossas próprias terras. Não temos sequer uma vaga noção do quanto essa área foi castigada pelas mais variadas adversidades, principalmente nas mãos do homem. São como as rugas de Hatoum, que passaram pelos Estados Unidos e por São Paulo, mas jamais se desligaram de suas raízes.

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